27/07/2008

Em busca de uma cultura democrática

Irretocável o artigo abaixo de Siro Darlan e Rubens Casara, publicado pelo JB (em azul).
Neste país visceralmente sebastianista, - todo o mundo sempre à espera de um messias que venha salvá-lo, consertá-lo, resolver os seus problemas (pessoais ou nacionais), - a cultura democrática ainda engatinha!
Por falta de investimento em educação ao longo dos séculos, a população não se dá conta de que são as quotidianas afirmações inter-pessoais, a compreensão de que os entes do Estado existem para servi-la, e a constante afirmação de seus direitos individuais (e a exigência de que sejam cumpridos) que constroem um Democracia sólida! Essa falta tem transformado este projeto brasileiro de Democracia numa luta desigual entre o Indivíduo e um Estado cada vez mais autoritário, cada vez mais à vontade para determinar o que é, ou deixa de ser, bom para cada um dos seus cidadãos, cada vez mais imoral na apropriação dos suados, e crescentes, impostos pagos pela população para benefício único e exclusivo desta nova casta, desta nomenklatura tupiniquim em que se constituíram os "companheiros", dando em troca autênticos "espelhinhos de índio" embalados numa propaganda que transforma o nazista Goebbels num perfeito amador!
Pode-se dizer que todas as últimas notícias veiculadas na mídia que envolveram agentes públicos retratam a falta de cultura democrática. O brasileiro, de todas as classes, acostumou-se com o arbítrio, fomentado em sucessivos regimes de exceção, e, não raro, confunde autoritarismo com autoridade.

Críticas às recentes decisões de órgãos da cúpula do Judiciário, nas questões relativas tanto à excepcionalidade das prisões no curso de investigações quanto à desnecessidade da utilização de algemas em situações em que não há risco a bens jurídicos protegidos, revelam o desconhecimento da dimensão de tratamento do princípio da presunção de inocência: todos devem ser tratados como inocentes até que a condenação se torne definitiva. Negar a Constituição, ainda que com subterfúgios não é uma postura democrática. No Estado de direito, os fins não justificam os meios contrários ao projeto constitucional.

Também é a desconsideração do princípio constitucional da presunção de inocência que levou a Associação dos Magistrados do Brasil e a maioria das presidências dos tribunais regionais eleitorais divulgarem a relação de candidatos que respondem a processos criminais. Afora o evidente caráter populista da medida, bem como a adesão acrítica ao mito de que os promotores que denunciam (e para a denúncia basta a existência de meros indícios de autoria) e juízes que condenam não erram (ou agem de má-fé), a divulgação dessas listas é uma clara violação à Constituição. O equívoco da medida salta aos olhos ao se lembrar que basta que um juiz, por antipatia a um determinado candidato ou mesmo por perseguição político-ideológica, receba uma denúncia para que a imagem do candidato sofra dano irreparável.

Inúmeras prisões desnecessárias prestigiadas por promotores, juízes, procuradores, desembargadores e ministros dos tribunais superiores também servem para reforçar a percepção de que a Constituição e os direitos são óbices transponíveis pelo desejo punitivo. Por outro lado, o caráter seletivo das punições e a crença infantil de que é possível solucionar os graves problemas sociais (desigualdade, racismo, homofobia, violência contra a mulher e contra a criança etc) transformando-os em casos de polícia são ingredientes que, cultivados pelos operadores jurídicos, afastam a justiça criminal dos ideais democráticos.

Na quadra histórica de descomprometimento com a democracia, a fala de um oficial da polícia militar que afirma integrar um "inseticida social" soa naturalizada, e sequer leva o autor da pérola à perda do cargo. Diante desse clima, no qual pessoas que ao serem mortas por agentes do Estado (em um país que formalmente não admite a pena de morte) são etiquetados de criminosos ou, quando a estratégia de desqualificação da vida se mostra inviável, apontados como danos colaterais ("infelicidades") do controle social, não causa surpresa que a "política do confronto", que recebe os aplausos de governantes, tenha como principal característica o "atira primeiro, para perguntar depois". Impossível que oficiais militares, secretários e o mandatário do povo fluminense desconheçam que a vida é o valor supremo e que respeito aos direitos são condições da democracia.

As mortes e a violência estatal que eram estimuladas em ações no Complexo do Alemão, na Coréia e em outros locais afastados dos holofotes da burguesia, chegaram à classe média. Para recuperar um carro furtado, dois são mortos. Na tentativa de cumprir um mandado de prisão, outros três tombam. A perseguição a um veículo suspeito acarreta a morte de uma criança. Da mesma maneira que, em dado momento histórico, versões e argumentos de Goebbels conquistaram a simpatia da população alemã, os ideólogos da política de segurança fluminense geram a crença – interiorizada pelos policiais e pela população – de que os agentes estatais estão autorizados a atirar em quem identificam como criminosos. Esses ideólogos procuram qualificar o resultado da irracionalidade da violência policial como erros individuais, como ações desassociadas da opção oficial pelo confronto, paradigma da guerra. Mentem. E a mentira, instrumento de desinformação, é antidemocrática.

Outro exemplo da falta de democracia é a tentativa de órgãos públicos de criminalizar movimentos sociais. A recente divulgação de documento da lavra de conhecido membro do Ministério Público gaúcho, na qual se traçava um plano que levaria à extinção do MST é o perfeito retrato dessa distorção autoritária. Confunde-se a sociedade organizada com baderna, taxa-se o povo em movimento (o "povo em armas", na feliz expressão de Maquiavel) como criminoso. A falta de hábito democrático levou à cegueira institucional. O fim da passividade do brasileiro, ainda, assusta do Oiapoque ao Chuí.

O modelo autoritário é engenhoso: a prática reforça o autoritarismo em um espiral de violência. A falta de uma cultura democrática faz com que grupos paramilitares (milícias) e ocupações repressivas nas comunidades carentes gozem de apoio popular, mais pela soma de desinformação com o sentimento de carência em relação às ações do Estado, do que pelos resultados concretos que alcançam na segurança. O paradoxo é evidente: com o pretexto de combater a ilegalidade, ilegalidades são cometidas; em nome do Estado de direito, vive-se em estado de exceção, no qual direitos fundamentais são afastados.

Urge uma ruptura democrática. O caminho é dado pela Constituição. Se a falta de cultura democrática permite danos à sociedade, cumpre incorporá-la. A opção pela democracia tem ônus e implica compromissos sociais, mas é o único caminho para se concretizar o projeto constitucional. Agir com olhos voltados à concretização do projeto de vida digna para todos é um primeiro passo. Democracia é participação popular, supõe a possibilidade de eleger os representantes da população e ser eleito, mas não se esgota nesse aspecto formal. Democracia é um processo que exige informação e, sobretudo, exige o respeito aos direitos fundamentais. Não há democracia sem o resgate da legalidade. Democracia não faz mágica, mas pode dificultar mortes, violações injustificáveis, desrespeitos à infância e outros fenômenos. Que nasça, 20 anos após a Constituição, a cultura democracia.

1 comentários:

Anônimo disse...

Pareabéns.
O artigo está ótimo, e o seu comentário preciso.
Continue.

Carlos R Teixeira - Petropolis

 
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